sábado, 4 de julho de 2009

O embaixador da ciência

Jerônimo Teixeira
O inglês Richard Dawkins chegou à biologia intrigado com grandes questões sobre a origem da vida. Tornou-se o maior divulgador atual do darwinismo e um ateu militante. No Brasil pela primeira vez, tratou mesmo de exercitar o seu lado de naturalista

Richard Dawkins interrompe a entrevista e aponta para o céu, onde voa um bando de pássaros barulhentos: "Olhe lá! Papagaios". Sóbrio, rigoroso nas suas respostas, Dawkins às vezes se mostra sarcástico – em particular, quando ataca seu alvo preferencial, a religião –, mas não é exatamente uma pessoa expansiva. O entusiasmo quase infantil diante de papagaios e tucanos – uma fauna que ele obviamente não encontra em sua casa em Oxford – pode ser creditado ao fascínio pela natureza que o autor comunica tão bem em livros como A Escalada do Monte Improvável e o recente A Grande História da Evolução, publicados no Brasil pela Companhia das Letras.

Dawkins, no entanto, diz que não se tornou biólogo porque gostava de animais ou plantas. "Devo confessar que nunca fui um grande naturalista. Só desenvolvi isso ao longo dos anos. Minha motivação inicial no estudo da biologia foi filosófica", diz. Sua curiosidade voltava-se para o que ele chama de "grandes perguntas": Por que existe vida? Como ela surgiu na Terra? E suas respostas provêm de uma fonte fundamental: o pensamento de Charles Darwin (este, sim, um naturalista nato). Dawkins, de 68 anos, é hoje o maior divulgador mundial do darwinismo. Mas ele fez muito mais do que apenas "popularizar" a biologia moderna: desde sua estreia espetacular com O Gene Egoísta, de 1976, Dawkins vem, sem exagero, consolidando uma nova visão do mundo.

Dawkins passou duas semanas no Brasil. Foi homenageado no congresso da Animal Behavior Society (Sociedade de Comportamento Animal), que reuniu pesquisadores de 23 países em Pirenópolis entre 22 e 26 de junho. De lá, partiu para uma excursão de três dias pelo Pantanal, acompanhado de outros pesquisadores que participaram do congresso. Voltou maravilhado com a diversidade da vida. "A variedade de pássaros é espetacular. Para minha sorte, fui acompanhado de vários ornitólogos. Não sou um especialista em aves", diz. Na quinta-feira passada, um dia antes de embarcar de volta para a Inglaterra, esteve em Parati, para uma conferência sobre Deus, um Delírio, seu panfleto antirreligião.

Na pousada que abrigou o congresso da ABS, Dawkins era sempre visto no saguão, debruçado sobre seu notebook Apple. Foi um frequentador assíduo e participativo das palestras – saiu entusiasmado de uma conferência de Marlene Zuk, da Universidade da Califórnia, sobre evolução rápida em grilos do Havaí. "Eu mesmo estudei esses grilos nos anos 70. Mas minha pesquisa não deu grandes resultados", diz. O convite para o congresso de comportamento animal ofereceu a Daw-kins a chance de se reconectar com a disciplina através da qual se iniciou no estudo da biologia, no começo dos anos 60, como aluno, em Oxford, do etologista holandês Niko Tinbergen, Nobel de Medicina em 1973. Nas últimas décadas, porém, ele se afastou da pesquisa direta para se dedicar à promoção da ciência. Hoje aposentado, Dawkins foi, de 1995 a 2008, o primeiro ocupante da cátedra de Compreensão Pública da Ciência, estabelecida em Oxford com fundos doados pelo húngaro-americano Charles Simonyi, ex-empresário e programador da Microsoft. "Sou uma espécie de embaixador da ciência", diz Dawkins.

Os livros de Dawkins sempre reservaram farpas para a religião (e em especial para os criacionistas). Mas a cruzada contra a fé passou a ocupar o centro de suas atividades desde o lançamento de Deus, um Delírio, em 2006. O cientista apoiou a campanha que colocou cartazes nos tradicionais ônibus vermelhos de Londres com os dizeres "Deus provavelmente não existe. Então pare de se preocupar e aproveite a vida". Sempre combativo, o biólogo não admite nenhuma solução de compromisso que reserve lugares distintos para a ciência e a religião. "Ao contrário do que muitos afirmam, os dois campos se interpõem, sim. A visão religiosa do universo, a ideia de que o universo tem um criador – isso é, a seu modo, uma teoria científica, embora equivocada", diz. Na perspectiva de Dawkins, portanto, promover o ateísmo é também uma forma de dar seguimento à sua principal missão: divulgar a ciência. Mas ele começa a se ressentir da fama polêmica que o ataque a Deus lhe rende. Lamenta, por exemplo, que os jornalistas em geral só façam perguntas sobre esse tema.

De fato, alguns começam a perceber Dawkins como o arauto de um programa negativo – o homem que diz não a Deus e à religião. Nessa condição é que ele foi satirizado, há três anos, no sempre cáustico desenho animado South Park (sua resposta foi bem-humorada: reclamou da péssima imitação do sotaque britânico feita pelo ator que dublou sua versão animada). A mensagem positiva de Dawkins é uma só: a teoria da evolução, descortinada por Charles Darwin em seu clássico de 1859, A Origem das Espécies. Em O Gene Egoísta, Dawkins encontrou uma linguagem única para expressar o significado profundo desse processo. Ele viu a seleção natural do ponto de vista de sua unidade básica, o gene. As criaturas vivas, argumentava, nada mais são do que veículos para a replicação dos genes através da reprodução. Essa é até hoje a perspectiva básica da psicologia evolutiva, que busca explicar o comportamento animal (humano, inclusive) em bases darwinistas. "Nunca houve um livro de ciência como O Gene Egoísta", escreveu o escritor Ian McEwan no trigésimo aniversário da obra. "Ele precipitou uma mudança colossal na teoria sobre evolução, e ao mesmo tempo conquistou o leigo, sem condescendência, e com estilo."
O ponto de vista revolucionário de Dawkins não foi imediatamente consensual no meio científico. Leitores apressados criticaram o suposto "determinismo genético" do autor. O ataque a Dawkins e a outros biólogos que faziam trabalhos análogos – como Edward O. Wilson, de Harvard – era mais ideológico do que propriamente científico. Alinhados com a esquerda, críticos como o geneticista Richard Lewontin, o neurocientista Steven Rose e o paleontólogo Stephen Jay Gould mostravam aversão programática a qualquer sugestão de que o comportamento humano pudesse ser influenciado pela genética.
"Nunca entendi por que afirmar que a influência do meio ambiente supera a dos genes era tão importante para os marxistas. Talvez tenha a ver com a crença de que o ser humano pode sempre ser aperfeiçoado", diz Dawkins. O Gene Egoísta afinal se estabeleceu como uma referência fundamental para a biologia moderna – e foi seguido de outros oito livros elegantes e envolventes em sua explicação da evolução (um novo título, The Greatest Show on Earth, está para ser publicado neste ano). Sua descrição da vida a partir do gene pode sugerir um materialismo duro e desencantado. A lição final, porém, é de um humanismo radical: o ser humano é o único capaz de se rebelar contra a tirania cega dos genes. "Sempre que usamos um contraceptivo, estamos contrariando o imperativo darwinista da reprodução. E fazemos isso em muitas outras áreas", diz Daw-kins. Darwinista ortodoxo, Dawkins poderia repetir em qualquer de seus livros a afirmação famosa com que Charles Darwin encerra A Origem das Espécies: "Existe grandeza nesta visão da vida".
Fonte: Veja